Arbitragem: Para ministra Nancy, Judiciário deve zelar por autonomia da vontade das partes

O auditório do STJ foi palco nesta segunda-feira, 25, do seminário intitulado “Superior Tribunal de Justiça e Corte de Cassação Francesa: A arbitragem na visão comparada”.
Coordenado pelo ministro Luis Felipe Salomão, participaram do evento magistrados do Brasil e da França, além de professores e outros especialistas no assunto. Vale lembrar, o ministro Salomão presidiu a Comissão de Juristas encarregada de atualizar a lei de arbitragem (13.129/15), bem como de propor a lei da mediação (13.140/15).
Um painel do evento tratou das concepções brasileira e francesa sobre contrariedade à ordem pública em matéria de arbitragem internacional; no segundo, a discussão centrou-se na homologação de sentenças arbitrais estrangeiras.
Abaixo, confira com exclusividade a palestra da ministra Nancy Andrighi, que integra a Corte Especial do STJ, responsável pela homologação de sentença estrangeira.
Estimado Vice-Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Min. Humberto Martins.
Estimado Coordenador Científico deste evento, Min. Luis Felipe Salomão.
Sua Exa. Patrick Matet, Magistrado da Corte de Cassação da França.
Sua Exa. Luiz Olavo Baptista, Professor da Universidade de São Paulo, Mestre maior na lições de arbitragem a quem devemos o desenvolvimento da doutrina em torno da arbitragem brasileira. É impensável trabalhar com a arbitragem sem buscar suas lições. Obrigada Professor pela sua ajuda inestimável nos nossos julgamentos.
Sinto-me extremamente honrada pelo convite para participar deste importante evento que busca promover o diálogo, a troca de conhecimento e de experiências entre dois países de grande relevância em termos de arbitragem internacional.
A França possui uma ampla tradição no tocante à arbitragem empresarial e não tenho dúvidas de que poderemos, a partir da observação da experiência francesa, implementar um infindável número de boas práticas e de soluções positivas em nosso cotidiano e em nossa arbitragem.
Agradeço, imensamente, as importantes lições que acabamos de receber do excelentíssimo magistrado da Corte de Cassação da França, Dr. Patrick Matet, e leve Vossa Excelência, a certeza de que elas muito contribuirão para com a nossa árdua tarefa de julgar as Sentenças Estrangeiras Contestadas.
Com as vossas lições poderemos examinar a concepção brasileira de contrariedade à ordem pública em comparação com este mesmo conceito sob a ótica do direito francês, inegavelmente avançado, e identificaremos os pontos de incompatibilidade, mas principalmente, a vasta gama de sinergias!
A participação do Poder Judiciário brasileiro no incentivo ao uso da arbitragem foi decisivo.
A título de exemplo, cito uma particularidade processual que adotamos, na qualidade de Corregedora Nacional de Justiça: mediante edição de um provimento foi solicitado a todos os vinte e sete Tribunais Estaduais de Justiça, que destacassem duas varas cíveis, nas capitais, com competência exclusiva para receber os pedidos de tutela de urgência e medidas cautelares solicitadas pelos árbitros.
Com essa providência, alcançamos a especialização dos juízes de direito, e o rápido trâmite dos pedidos formulados pelos árbitros, propiciando ao procedimento arbitral o diferencial que merece.
Fazendo um balanço de atuação do STJ constatamos que desde 30 de dezembro de 2004, data em que a Emenda Constitucional 45 entrou em vigor, até 31 de dezembro de 2015, foram julgados 67 pedidos de homologação, dos quais apenas 9 foram indeferidos ou denegados, 5 foram extintos e 3 parcialmente homologados, resultando em 50 sentenças arbitrais estrangeiras homologadas.
Todavia, para que os jurisdicionados abdiquem da jurisdição judicial e confiem em outros meios de solução de controvérsias, é preciso que haja segurança e previsibilidade.
Significa dizer, portanto, que livremente escolhida pelas partes a arbitragem, caberá ao Poder Judiciário recuar e apenas zelar pela máxima preservação da autonomia da vontade das partes.
Especificamente em relação à arbitragem, respeitar a autonomia da vontade das partes equivale a honrar a autoridade do árbitro a quem as partes confiaram a resolução da controvérsia, tratando-o de acordo com o estabelecido na nossa lei de arbitragem = o árbitro é juiz de fato e de direito e, como tal suas decisões devem ser acatadas.
É nesse contexto que se diz que a homologação da sentença arbitral estrangeira somente pode ter negada a sua homologação se ofender a ordem pública nacional.
O conceito de ordem pública, embora indeterminado e dependente de interpretação para que dele se extraia o seu real sentido e conteúdo, pode ser representado por um conjunto de princípios incorporados na ordem jurídica interna que, por serem essenciais à sobrevivência do Estado, não podem ser contrastados pelo direito estrangeiro.
O conceito de ordem pública é fluído porque varia no tempo e no espaço entre mudanças culturais e valorativas da sociedade em cada época, mas é estável, não é idêntico, é limitador da vontade no direito interno e impede a aplicação de leis estrangeiras.
A nossa lei de arbitragem, em seu art. 39, parágrafo único, indica uma hipótese daquilo que não se considera ofensa à ordem pública, ao estabelecer que “não será considerada ofensa à ordem pública nacional a efetivação da citação da parte residente ou domiciliada no Brasil, nos moldes da convenção de arbitragem ou da lei processual do país onde se realizou a arbitragem, admitindo-se, inclusive, a citação postal com prova inequívoca de recebimento, desde que assegure à parte brasileira tempo hábil para o exercício do direito de defesa”.
O Superior Tribunal de Justiça para decidir tem usado o critério restritivo, isto porque está atento aos termos do art. V da Convenção de Nova Iorque.
Temos como exemplo:
Temos como exemplo:
  1. Ofende a ordem pública a ausência de expressa manifestação das partes abdicando da jurisdição estatal, especialmente, porque se verificou a ausência da assinatura de uma das partes contratantes no contrato onde se elegeu a cláusula arbitral. (SEC 967, Rel. Min. José Delgado, DJ de 20/3/06).
  2. Também ofende a ordem pública a submissão de litígio ao juízo arbitral quando celebrados contratos de compra e venda de produtos por via telefônica em que não seja possível a comprovação da existência e aceitação de convenção de arbitragem tácita (SEC 866, Rel. Min. Felix Fischer, DJ de 16/10/06).
  3. Ofende a ordem pública a parte da sentença estrangeira que determina a desistência, sob pena de sanção, de ação anulatória em andamento no Brasil, porque o acesso ao Judiciário é cláusula pétrea que não pode ser penalizada. (SEC 854, Rel. Min. Massami Uyeda, DJe de 7/11/13).
  4. Que ofende a ordem pública nacional, segundo o STJ a cumulação da correção monetária com a variação cambial e tendo a sentença estrangeira determinado a incidência cumulativa, sobre o débito principal, de correção monetária e variação cambial se mostra inviável a homologação total da sentença arbitral que condena ao pagamento de valor em dólares norte-americanos e determina, ainda, a conversão do referido valor para reais na data do efetivo pagamento e mais a incidência de correção monetária (isto é, incidência cumulativa, sobre o débito principal, de correção monetária e variação cambial) (SEC 2.410, de minha relatoria para acórdão, DJe de 19/2/14).
  5. Que NÃO ofende a ordem pública a decisão de Junta de Conciliação e Arbitragem do México desenvolvido sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, ainda que nele tenha a parte renunciado a direitos trabalhistas por ocasião da celebração de acordo celebrado perante a referida Junta em que se deu quitação ampla e total do contrato de trabalho (SEC 4.933, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe de 19/12/2011).
  6. Que NÃO ofende a ordem pública a sentença arbitral que reconhece não ter havido abdicação a direito laboral indisponível, mas apenas aplica a multa rescisória, constante de clausula prevista no contrato, e, declara a existência de violação do contrato de trabalho por atleta profissional para afirmar a exigibilidade da multa prevista (SEC 11.529, Rel. Min. Og Fernandes, DJe de 2/2/15).
Os julgados citados demonstram que o conceito de “contrariedade à ordem pública” foi adequadamente aplicado nos julgamentos pinçados de um contexto maior, e possibilitam, que tenhamos um panorama geral do entendimento fixado pela Corte.
Ao encerrar, não posso deixar de destacar que o monopólio estatal da jurisdição caminha na contramão do progresso.
É preciso que se observe a tendência mundial de democratização do Poder Judiciário, o que somente se concretizará se houver a efetiva popularização dos meios adequados de solução de controvérsias, tão enfaticamente fomentados pela nova legislação processual civil brasileira.
E, não tenho dúvida, a arbitragem tem um papel de destaque e da mais alta relevância nesse movimento migratório.
Estimado Magistrado Patrick, nosso ilustre convidado, somente para o vosso deleite, vou contar uma história, a qual, usei inúmeras vezes em minhas palestras para incentivar o uso da arbitragem no Brasil.
Numa terra muito distante que sempre estava em guerra, havia um rei que causava pavor.
Cada vez que fazia prisioneiros, não os matava, levava-os a uma sala, onde havia um grupo de arqueiros em um canto e no outro canto uma imensa e assustadora porta de ferro, na qual estavam gravadas figuras demoníacas, caveiras cobertas por sangue, desenhado um quadro verdadeiramente apocalítico.
Nesta sala, o rei, fazia seus prisioneiros andar horas em círculo e, então, dizia: SOU UM REI DEMOCRÁTICO “vocês podem escolher como querem morrer flechados por meus arqueiros, ou passar por aquela porta e por mim lá serem trancados.”
Todos os prisioneiros que por ali passaram, escolhiam serem mortos pelos arqueiros. Morte segura e sem aumento de sofrimento.
Ao término da guerra, um soldado que por muito tempo servira o rei indagou, com muito respeito:
-Senhor, posso lhe fazer uma pergunta?
-Diga, soldado.
-O que há por detrás daquela tão assustadora porta?
-Vá e veja, disse o Rei.
O soldado então se dirige à porta e com muito cuidado e receio a abre vagarosamente e percebe que, à medida que abria, raios de sol foram adentrando e clareando o ambiente, até que totalmente aberta, nota que a porta levava ao caminho rumo à liberdade.
Fica para a nossa reflexão:
– A escolha pela arbitragem seria um caminho para uma liberdade… diante dos 70 milhões de ações que tramitam hoje no Poder Judiciário brasileiro.
Obrigado pela fidalguia com que me ouviram. Obrigado!
Fonte: Migalhas, 25/9/2017
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